segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Uma flor clandestina num país a preto e branco

Era uma flor, uma flor clandestina. Nascera em segredo, num recanto escondido de um país a preto e branco, onde as cores eram proibidas. Não era dali, com certeza, pois era muito colorida.

Não se sabe como foi ali parar aquela flor. Talvez tivesse sido uma semente trazida pelo vento ou pelas asas de um pássaro, de muito, muito longe, que germinara na terra negra e húmida.

De dia para dia, as pétalas daquela flor clandestina ficavam cada vez mais coloridas. Eram sete pétalas, sete cores, as cores do arco-íris: uma pétala vermelha, da cor do fogo e da coragem; uma pétala laranja, da cor do sol e da alegria; uma pétala amarela, da cor das searas e da fraternidade; uma pétala verde, da cor dos prados e da esperança; uma pétala azul, da cor do céu e da liberdade; uma pétala lilás, da cor da madrugada e do amor; uma pétala violeta, da cor do poente e da paz.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

O grito da Gioconda


O Louvre acabara de fechar e os corredores e galerias, ainda há pouco vibrantes de risos e conversas, mergulhavam no silêncio.
Cerca de uma hora depois, num leve sussurro, uma voz perguntou:
- Já podemos?
- Ainda não. Espera mais um pouco - respondeu outra réstea de voz.
- E o segurança? - questionou alguém, em tom preocupado.
- Não de inquietes. Daqui a dez minutos, estará a ressonar, refastelado no cadeirão do diretor. Desde que descobriu onde este guarda a garrafa do uísque, não passa uma noite acordado.
Logo que este cenário se confirmou, as estátuas e os personagens das pinturas começaram a aglomerar-se no salão central. Nessa noite, ia haver concurso de dança.
Três músicos picassianos de feição cubista começaram a tocar um tango. Formaram-se pares, que competiam pelo galardão dos melhores dançarinos.
Num canto, os elementos do júri iam tomando apontamentos e trocavam impressões entre si.
Nova música, agora uma valsa, marcava o ritmo da segunda prova. Seguiu-se uma rumba, um chá-chá-chá e um samba. A competição estava renhida e não havia maneira de o júri se decidir.
Já passava das duas da manhã quando um fauno irrompeu pelo salão, esbaforido, a gritar:
- Alerta, o guarda acordou. A garrafa estava quase vazia e o sono foi curto. Pirem-se já para as vossas posições, rápido, rápido!
Numa correria, cada qual procurou o seu lugar e a sua pose habituais. No entanto, com a precipitação - ou porque não tiveram tempo de chegar onde deviam - alguns estacionaram no sítio errado. Foi o caso, por exemplo, da Gioconda, que entrou atabalhoadamente num quadro de Munch e ali ficou, com a boca escancarada num grito mudo de aflição.
Minutos depois, o segurança iniciou a ronda. Nessa noite, tudo lhe pareceu estranho e deslocado. No entanto, encolheu os ombros, convencido de que era o uísque que estava marado.
[imagem gerada na plataforma leonardo.ai]

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Micro-conto outonal

O António Equinócio entrou na tasca dos ferroviários, com cara de poucos amigos.
- Bem vindo sejas, ó Tono! Eu não vos disse que ele chegava hoje? Ora, aqui está ele - gracejou o taberneiro.
A gargalhada foi geral, mas o visado não achou piada.
- Continuem assim e logo Verão. Nem a prima Vera vos acode. Faço da vossa vida um Inverno. Ou não fosse eu o chefe da estação.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

A amêndoa fugitiva

 


- Socorro! Socorro! Ele quer-me comer! - gritava aterrorizada uma amêndoa de caramelo salgado, rebolando pelo chão de mosaico.

Atrás dela, vinha um rapazito gordo, de passada pachorrenta, mas segura:

- Ora esta! Ora esta! - balbuciava ele, com a boca cheia de doces -. Deixa estar, minha atrevida, que não me escapas!

Mas o terror da amêndoa fugitiva era maior que a gula do rapazote e esta acabou por se distanciar. Aproveitando a porta entreaberta, escapuliu-se para a rua.

O sol primaveril brilhava glorioso e a amêndoa teve um lampejo de esperança. Finalmente, estava livre. Poderia cumprir o seu maior sonho e ir correr mundo.

Aproximou-se da borda do passeio e dispôs-se a atravessar a rua. No entanto, um carro que passava naquele instante, zás!, atropelou-a.

Na soleira da porta, o rapaz olhava incrédulo para a amêndoa esborrachada.

- Ora esta! Ora esta! Ficou feita em papas. Não faz mal, ainda tenho um pacote quase cheio! - concluiu ele, fechando a porta atrás de si.

Quem se regalou foi um pardalito que por ali andava, voltando para o ninho com o papo cheio de doces migalhas.

- Páscoa Feliz! Páscoa Feliz! - cantava ele, todo contente.

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Esperto como o alho



Sempre que ouvia a expressão, o alho enchia-se de orgulho. Era a confirmação de que toda a gente reconhecia a sua superioridade intelectual.

Um dia, convencido da sua suprema esperteza, inscreveu-se nas Olimpíadas Internacionais da Matemática. No entanto, as coisas não lhe correram como esperava e teve um desempenho vergonhoso. Errou todos os problemas, classificando-se em último lugar.

Ficou então a perceber que nem no sector culinário teria futuro, porque era, afinal, uma cabeça de alho chocho.

sábado, 3 de abril de 2021

Rimance da pomba cansada

 

(À minha amiga Teresa Pombo)

Lamentava-se uma pomba
No ramo de um pinheiro:
- Estou cansada, tão cansada,
De trabalhar o dia inteiro.

Não me falta que fazer
Nem a labuta se fina,
Desde que o sol se ergue
Até que no mar declina.

E mesmo sem o astro-rei
Para iluminar a lida,
O trabalho não acaba
Nem se muda a minha vida.

Noite dentro, mais trabalho,
Até romper a madrugada.
Aqui fica o meu protesto:
Estou cansada, muito cansada.

É trabalho e mais trabalho,
Já não sei dizer que não.
Dia a dia se agiganta,
Só pode ser maldição,

Já mal durmo, já mal como,
Meus olhos são duas brasas,
Tenho as costas alquebradas
Nem consigo dar às asas.

Mas, assim, pobre de mim,
Tão exausta que não aguento,
Ou ponho os pontos nos ii
Ou qualquer dia rebento.

Por isso, amigos meus,
Já chega de aflição.
Hoje é dia de aleluia,
É tempo de renovação.

Pousada neste raminho
Onde edifiquei o meu lar,
Vou esquecer o trabalho
E, finalmente, folgar.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

O almocreve das letras

(A propósito do Dia Internacional do Livro Infantil)

O chiar das rodas da carroça ecoa entre as fragas, entrecortado pelo resfolegar do pequeno cavalo que, penosamente, a puxa. A ladeira é íngreme e o piso irregular. O almocreve dormita, reclinado no banco, com as rédeas pousadas sobre os joelhos. Os olhos semicerrados mal vêm a poeira que se levanta na tarde quente.

À falta de estímulo, cansado da carga pesada, o animal abranda o passo e depois estaca, acordando o homem.

- Então, Marengo, que se passa? Estás cansado? - diz ele para o animal. - A jornada já vai longa, compreendo, mas temos de chegar antes do cair da noite.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

O comboio da desgraça

As doze carruagens do comboio 2020 estavam apinhadas. Na primeira, iam as chamadas «pessoas quadradas», na segunda, donzelas de rosto oval, na terceira, gordos de pança esférica. E assim sucessivamente, até à última, onde dormitavam alguns funcionários do Pentágono.
Era grande a reinação, quando se ouviu uma chiadeira medonha e a composição estacou. Atropelara uma vaquinha que ruminava no meio da via.
Vários passageiros protestaram logo:
- Não há viagem em que não aconteça alguma desgraça. Maldito 2020.

(Participação no desafio n.º 230 do blogue 77palavras.blogspot.com)

terça-feira, 21 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (33)


O que estaria o senhor Semedo a fazer debaixo da mesa? O Jóquer espreitou do espelho e perguntou, divertido:
- Andas a jogar às escondidas?
O dono da casa levantou-se rapidamente e retorquiu:
- Não. Deixei cair algumas cartas, quando estava a preparar a mesa para este serão.
- São coisas que acontecem, deixa lá - riu-se o amigo.
Assim que o baralho ficou completo, com a face das cartas virada para baixo, o senhor Semedo escolheu uma. Saiu-lhe o Dois de Espadas, que anunciou:
- A história que vos trago são favas contadas. Mas, se não gostarem, no final, podem mandar-me à fava.
Riu-se da sua própria graça e começou a contar:

segunda-feira, 20 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (32)


O senhor Semedo pousou a viola, desgostoso. Há anos que tentava, mas nunca conseguira aprender mais que dois ou três acordes. As pontas dos dedos doíam-lhe e estava farto daquilo. Guardou o instrumento cuidadosamente dentro da capa e foi arrumá-lo no quarto. Não queria que o Jóquer tomasse conhecimento do seu fracasso. A seguir, preparou as coisas para o serão: o espelho sobre a cadeira da frente e as cartas espalhadas na mesa.
- O que andaste a fazer hoje? - inquiriu o Jóquer quando chegou.
- Nada de especial - mentiu o dono da casa.
- Ai sim? E o quê, mais precisamente? - atacou de novo o Jóquer.
- Já disse, nada de especial - resmungou o senhor Semedo. - Olha, estive a ler e a ouvir música.
- Está bem. Já vi que não te apetece falar disso - respondeu o outro. - Vamos às cartas?
O senhor Semedo virou uma e saiu-lhe o Valete de Ouros que, depois de uma breve saudação, começou logo a contar a sua história.

domingo, 19 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (31)


O baralho estava pronto, em cima da mesa, quando chegou o Jóquer, mas onde andaria o dono da casa?
- António? Ó António, onde páras? - chamou o Jóquer.
O senhor Semedo entrou na sala ainda a ajeitar a roupa e a resmungar:
- Bolas, já não se pode ir à casa-de-banho, é? E não gosto que me chames António, é Semedo.
- Desculpa. Como não estavas, fiquei preocupado - respondeu o amigo, com o seu ar trocista. - Lavaste as mãos?
- É evidente! - ralhou o outro. - E agora, sem mais delongas, vou escolher a carta de hoje.
Saiu-lhe o Oito de Copas que avisou:
- A história que vos trago hoje é do domínio do improvável, como a maioria das que já se contaram aqui. No entanto, ao contrário das outras, que tentam fingir a sua veracidade, nesta é assumida do princípio ao fim. Preparados? Então, aqui vai:

sábado, 18 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (30)

Ilustração do livro «A little bit of winter», de Paul Stewart e Chris Riddell
Desta vez, o Jóquer apareceu meio escondido atrás de um leque aberto.
- Hola! Olé! - saudou ele, com voz de falsete.
- Mas que palhaçada é essa? - questionou o senhor Semedo.
- Palhaçada? «Afición», se faz favor. - respondeu o amigo, com uma gargalhada.
- O quê, também és partidário daquele espectáculo degradante em que se tortura um touro até à morte? - indignou-se o dono da casa.
- Nada disso, coitadinho do bicho - desculpou-se o Jóquer. - Mas venho agora de uma fantástica exibição de flamenco e estou inspirado.
- Ainda bem, fico mais descansado - retorquiu o senhor Semedo. - Vamos às cartas?
- Claro! Vira lá uma, para sabermos que história iremos ouvir hoje.
O senhor Semedo assim fez e saiu-lhe o Cinco de Espadas.
- A nossa história de hoje é um hino à amizade. Sentai-vos e escutai!

sexta-feira, 17 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (29)


Quem diria que o senhor Semedo era capaz de tanta minúcia... Com uma pequena tesoura, passou o dia a recortar formas intrincadas em várias folhas de papel de seda, que colou sucessivamente em rectângulos de cartolina colorida. Havia flores, animais, fiadas de casas, pessoas...
Quando o Jóquer apareceu, ficou boquiaberto com aquelas «obras de arte», como ele lhes chamou. O dono da casa ficou um pouco embaraçado com a efusividade do amigo e respondeu:
- Ora, nada de mais. Costumava fazer este tipo de coisa quando era miúdo e hoje apeteceu-me recordar esses tempos.
Espalhou as cartas sobre a mesa e, como de costume, virou uma ao acaso. Era o Rei de Paus.
- Estava já a achar que as figuras mais importantes dos naipes se andavam a esquivar - murmurou o senhor Semedo para o Jóquer.
O Rei de Paus fingiu que não ouviu e fez uma vénia elaborada aos dois.
- Hoje, iremos constatar que, por vezes, os nossos desejos se realizam da forma mais inesperada - anunciou, começando a narração:

quinta-feira, 16 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (28)


O Jóquer apareceu a assobiar uma melodia barroca e acenou ao senhor Semedo, que espalhava as cartas sobre a mesa da sala.
- Vens muito bem disposto - disse-lhe este.
- Muito. Venho agora da Ópera, onde assisti a um espectáculo magnífico - respondeu o Jóquer.
- Mas não está tudo encerrado, por esse mundo fora? - espantou-se o dono da casa.
- Desse lado do espelho, sim. Aqui, o tempo é outro - gargalhou o amigo. - Vá, escolhe a carta de hoje, que estou curioso.
O senhor Semedo vagueou a mão ao acaso por sobre o baralho e tirou o Seis de Copas.
- Gostam de ler? - inquiriu a carta de jogar.
O senhor Semedo agitou a cabeça afirmativamente, mas o Jóquer moveu a palma da mão direita para um lado e para o outro, em sinal de «assim-assim».
O Seis de Copas registou as respostas dos amigos e rematou:
- Ler é bom, muito bom. Mas tudo o que é demais é moléstia, como diz o ditado. É disso mesmo que trata esta história.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (27)


Os copos tiniam uns contra os outros, enquanto o senhor Semedo os arrumava de novo na cristaleira. Tinha decidido ocupar o seu dia a aspirar o pó dos livros e a devolver o brilho aos copos que há muito não eram usados. Quando terminou as tarefas, sentiu-se muito satisfeito consigo próprio. Há muito tempo que a sua casa não estava tão limpa.
Depois de jantar, preparou tudo para o ritual do costume. Colocou o espelho na cadeira em frente à sua, junto à mesa da sala, onde espalhou as cartas do baralho, com as faces viradas para baixo. Quando o Jóquer chegou, pegou numa e virou-a. Saiu-lhe o Sete de Espadas.
- Salve! - saudou a carta de jogar - Estais prontos para uma fábula?
- Claro que sim! - responderam entusiasmados os dois amigos.
E esta foi a história que o Sete de Espadas contou:

terça-feira, 14 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (26)


Era já tarde quando o senhor Semedo acabou as tarefas que tinha destinado para aquele dia. Quando se deu conta das horas, estava quase na altura do seu encontro com o Jóquer, que devia estar mesmo a chegar. Improvisou um jantar ligeiro, instalou-se na mesa da sala, em frente ao espelho, e espalhou as cartas do baralho.
- Pareces um pouco desorientado - gracejou o Jóquer, quando apareceu.
- Pois. Hoje distraí-me com as horas. Levei muito mais tempo do que pensava, a fazer o que tinha a fazer. Acabei agora mesmo de engolir a última garfada do jantar - riu-se o dono da casa. - Mas já está tudo pronto. Posso virar a carta?
- Oh! Claro que sim - respondeu o Jóquer. - O que nos sairá hoje?
- Olha, é uma Quadra de Copas! - disse o senhor Semedo.
O Quatro de Copas cumprimentou os dois amigos e perguntou se tinham alguma questão a por-lhe, antes de contar a sua história. O dono da casa aproveitou a oportunidade:
- Todos vocês, os habitantes do baralho, sabem histórias, umas mais divertidas, outras mais assustadoras, umas sérias e outras tolas. Já sei que isso se deve ao facto de terem corrido o mundo e lidado com gente de todos os estatutos e idades. No entanto, tenho uma dúvida. De onde terão surgido as histórias?
A carta de jogar ficou um pouco pensativa e depois respondeu:
- Creio que não há uma resposta para essa questão, mas várias. Cada povo tem uma explicação para essa origem. Vou aproveitar e contar uma lenda sobre o assunto que veio da longínqua ilha de Timor.
Os dois amigos aquietaram-se e o Quatro de Copas começou a contar.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (25)


A carta escolhida pelo senhor Semedo nessa noite foi o Dois de Paus, que saudou o Jóquer e o dono da casa com um aceno de mão e anunciou:
- A história que vos trago hoje tem um enigma. Fica ao vosso cuidado solucioná-lo no fim.
E, sem mais delongas, começou a contar.

Um soldado aventureiro, conhecido pela sua ousadia, ouviu dizer que, algures num reino do outro lado do mar, havia um imenso tesouro, à guarda de um monstro. Já muitos tinham tentado resgatá-lo, mas nenhum voltara dessa empresa. Como se tinha como homem de grande valentia, decidiu tentar a sua sorte.
Embarcou num navio de mercadorias e, passadas várias semanas, atracou no tal país. Nas tabernas do porto, procurou informações sobre o monstro e o local onde o poderia encontrar, mas a maioria das pessoas evitava falar no assunto. Até que, durante um jogo de cartas, um marinheiro embriagado desatou a língua e lhe forneceu as informações pretendidas.
O monstro morava numa caverna que ficava algures a Norte, na Montanha Tenebrosa, a vinte léguas dali e devorava todo e qualquer ser vivo que encontrasse. Toda a gente evitava aquelas paragens, pelo que o aventureiro teria de se deslocar pelos seus próprios meios.
Depois de recolher as indicações sobre o local, o soldado comprou um cavalo, abasteceu-se de mantimentos e partiu em viagem.

domingo, 12 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (24)


- Foi muito bonita, a história de ontem - disse o senhor Semedo ao Jóquer, quando este chegou. - Faz-nos tomar consciência de que a raiz dos nossos medos está dentro da nossa cabeça.
Este acenou em concordância e acrescentou:
- Somos nós que alimentamos os monstros que nos aterrorizam. Por isso, todos temos poderes para os derrotar. Precisamos apenas de um bocadinho de coragem, como dizia a Rainha de Espadas.
- É verdade - comentou o dono da casa, pensativo.
Pouco depois, acrescentou:
- Sabes? Há uma coisa que me intriga. Como é que as cartas de jogar conhecem tantas histórias?
O Jóquer riu-se:
- Isso não é difícil de explicar. As cartas de jogar são muito antigas, conhecem e são conhecidas no mundo inteiro e lidam com gente de todas as gerações e classes sociais. A propósito, soube há pouco que hoje iremos ter uma surpresa do outro lado do mundo.
O senhor Semedo ficou curiosíssimo, mas o Jóquer recusou-se a adiantar mais o assunto.
- Se te dissesse, deixava de ser surpresa - justificou ele. - Primeiro, temos de cumprir o nosso ritual. Espalha as cartas na mesa e escolhe uma. Depois, logo verás.
A carta escolhida ao acaso foi o Dez de Copas, que fez uma vénia cheia de salamaleques e iniciou assim o seu discurso:
- Os povos do Oriente têm uma relação muito especial com o sobrenatural. Sendo a morte entendida como estado de transição e de evolução, a convivência com as almas dos falecidos é assumida com toda a naturalidade. A história que vos trago vem do Japão e tem a ver com este assunto. Começa assim...

sábado, 11 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (23)


O senhor Semedo decidiu dedicar o dia ao desenho e à pintura. Foi buscar uns materiais que tinha guardado há anos numa caixa, instalou-se junto à janela e começou a esboçar as árvores e as casas da rua. Há muito que o não fazia e sentiu a mão que segurava o lápis um pouco perra. A pouco e pouco, os traços foram ficando mais fluídos e as formas mais bem definidas. Depois, deu umas pinceladas coloridas com aguarela e deixou a secar. Considerou o trabalho bastante satisfatório, tendo em conta a longa falta de prática. O próximo ficaria melhor...
Era já tarde, quando arrumou os materiais para preparar a mesa da sala para o serão. À hora marcada, o Jóquer apareceu sorridente no espalho, como sempre fazia.
- Que desenho tão giro! - exclamou ele. - Quem fez? Tu? Parabéns. Não te conhecia tais dotes. Aliás, há ainda muita coisa sobre ti que eu não sei. Temos de conversar mais... Mas não agora, pois está na hora de escolheres a carta da noite.
O senhor Semedo virou uma e saiu-lhe a Rainha de Espadas, que proclamou:
- Coragem! O que mais precisamos é de coragem. Mesmo quando o perigo nos ameaça, não podemos sucumbir ao medo. A história que aqui vos trago é sobre uma menina que derrotou o Medo. Sereis vós capazes disso?
O dono da casa e o Jóquer entreolharam-se, interrogativos, mas a carta de jogar começou a contar:

Um Medo foi instalar-se no sótão de uma casa, decidido a aterrorizar uma menina que vivia no andar de baixo. Todas as noites arranjava maneira de a assustar. Fazia ranger as tábuas do soalho, arrastava coisas de um lado para o outro, arranhava as telhas com as unhas, abria a janela gateira, para que o vento entrasse a uivar e, o pior de tudo, enchia a cabeça da criança com imagens aterradoras. E todas as noites esta acordava aos gritos, alvoroçando a família inteira. A mãe e o pai bem lhe explicavam que não existiam papões, nem monstros nem fantasmas. Diziam que era tudo imaginação, mas a menina não acreditava. E na noite seguinte os gritos e sobressaltos repetiam-se.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (22)

O senhor Semedo sentia-se mais animado. Afinal, de que se podia ele queixar? Estava em segurança, não lhe faltava nada em termos materiais e tinha amigos que o vinham visitar e conviviam com ele ao final do dia. A propósito, estava na hora de preparar tudo...
Assim que acabou de dispor as cartas sobre a mesa, o Jóquer sorriu no espelho:
- Vamos a isso?
O senhor Semedo virou uma carta. Era um Nove de Paus, que contou a seguinte história:

Havia um rei que tinha duas filhas e gostava muito de caçar. Um dia em que andava na montaria, embrenhou-se na floresta em perseguição de um cervo e perdeu-se do resto da comitiva. Vagueou entre o mato cerrado durante bastante tempo, até que sentiu odor a fumo. Seguindo o cheiro, foi dar à cabana de um carvoeiro.
Depois de dizer ao carvoeiro qual era a sua situação, o rei pediu-lhe que lhe indicasse o caminho para a cidade. O carvoeiro respondeu-lhe que, por muito bem que lho explicasse, dificilmente aquele daria com o caminho. Por outro lado, não o poderia acompanhar naquele momento. Se abandonasse o local, havia o risco do fogo da carvoaria se descontrolar e pôr a floresta em risco. Tinha uma filha, mas esta andava fora, a vender carvão. Tinham, no entanto, um porco muito esperto, que costumava fazer com ele o caminho para a cidade. Por isso, não se importava de lho alugar, desde que ele prometesse que o devolveria. Esperavam fazer com o bicho uns belos enchidos, no Inverno seguinte. O rei prometeu devolver o animal, pagou ao carvoeiro e seguiu caminho atrás do porco.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (21)


O senhor Semedo andou todo o dia macambúzio, não sabia bem porquê. Talvez fosse o longo período de reclusão que voltava a azedar-lhe o humor. Os raros momentos em que saía à rua deviam-se apenas a necessidades prementes e inadiáveis. Nunca conversava com ninguém, trocando apenas as palavras indispensáveis com o merceeiro ou a farmacêutica. Assim que resolvia o que tinha a tratar, voltava num ápice para casa. O resto do tempo, ficava sempre sozinho, trancado no apartamento. Por isso é que os momentos com o Jóquer e as restantes cartas do baralho eram tão importantes para si.
Foi com estas cogitações que passou a manhã e depois a tarde. Até que chegou a hora do encontro. Colocou o espelho no sítio do costume e espalhou as cartas sobre a mesa. Assim que o Jóquer chegou, virou uma delas, de imediato.
- Ó diabo! - reagiu o Jóquer. - Hoje, estás de mau humor.
- Pois. Nem me digas nada. Há dias assim, que queres? - respondeu, abatido, o dono da casa.
- Vamos lá ouvir a nossa história, que isso há-de passar - riu-se o outro.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (20)


- Por onde andaste hoje? - perguntou o senhor Semedo ao Jóquer, quando este espreitou do espelho.
- Desta vez, fui à Índia. Estive no palácio de um marajá, a apreciar uns doces maravilhosos - respondeu este, com um lamber de beiços. - Mas vejo que já tens o baralho pronto. Vamos, vira uma carta!
O dono da casa assim fez e saiu-lhe o Ás de Espadas, que anunciou:
- Trago-vos uma história de dragões, princesas e anões. Ah! E um lobo que, para variar, não é um Lobo Mau, antes pelo contrário.
E começou a contar:

Há muito, muito tempo, quando ainda havia fadas e ogres, vivia num reino longínquo um anão chamado Zelim. Era muito trabalhador e ocupava os seus dias a escavar pacientemente uma mina de ouro. Há anos que o fazia, embora sem grande resultado, dado que o objecto da sua busca era muito escasso. O local tinha sido abandonado há muito tempo, por ser pouco produtivo, mas Zelim tinha esperança de um dia achar um filão que recompensasse a sua persistência.
A mina situava-se na encosta de uma montanha, de onde se vislumbrava uma imensa planície coberta por densa floresta. Ao fim da tarde, Zelim gostava de sentar-se à entrada, a fumar, observando o sol a afundar-se na linha do horizonte. Era o momento em que os animais diurnos se refugiavam nas suas tocas e ninhos e os nocturnos saíam para as suas lides. E, dali de cima, Zelim via e ouvia tudo e todos e sentia-se o rei da montanha.

terça-feira, 7 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (19)


O Jóquer trazia um sorvete na mão, quando apareceu no espelho, em frente ao senhor Semedo.
- Andas a tratar-te bem - espicaçou-o este, com um risinho malandro.
- «Gelato al pistacchio», directamente de Itália. Tenho aproveitado para saltar de espelho em espelho, por esse mundo fora. Já estava com saudades das minhas viagens. E visto que tu não podes ir, vou eu... - respondeu este, começando a contar alguns pormenores mais relevantes dos seus passeios.
O dono da casa agradeceu o relato e depois lembrou que eram horas de escolher uma carta para a história dessa noite. Feitas as necessárias diligências, saiu um Dez de Espadas.
A carta de jogar fez uma saudação e informou que a história que trazia punha em causa a imagem negativa de um dos personagens mais conhecidos das histórias tradicionais: o lobo.
- Bem, acho que o lobo das histórias é um lobo particularmente malvado - argumentou o senhor Semedo. - Por isso, o seu nome vem sempre acompanhado por um adjectivo. É o Lobo Mau.
- Seja! - retorquiu o Dez de Espadas. - No entanto, essa imagem de maldade acaba por atingir toda a espécie, o que é injusto. O trovador da minha corte escreveu umas rimas a esse propósito, apresentando a perspectiva do personagem.
E começou a recitar um poema a que deu o título «A queixa do senhor lobo».

segunda-feira, 6 de abril de 2020

A quarentena do Capuchinho Vermelho


Tal como na original, há nesta história uma menina, muito amada pela mãe e pela avô, a quem esta mandou fazer-lhe um capucho vermelho. Ficava-lhe tão bem, que em todo o lado lhe chamavam «Capuchinho Vermelho».
Um dia, a mãe, aborrecida por estar em casa de quarentena, fez a quadragésima sétima fornada de pão e bolinhos e disse-lhe:
- Ai, para que quero eu tantos bolinhos!? Não vamos conseguir comer isto tudo sem ficarmos que nem baleias. Olha, vai a casa da avó, levar-lhe esta cestada deles. Mas vai num pé e vem no outro e não te esqueças de calçar as luvas e colocar a máscara. E, se encontrares alguém na rua, mantém pelo menos dois metros de distância, como recomenda aquela senhora da DGS. Se algum polícia te mandar parar, diz-lhe que vais prestar assistência a uma idosa.
Depois de se equipar, a menina saiu de casa ao pé coxinho, mas doeram-lhe as pernas e percebeu que, se calhar, não era bem isso que a mãe queria dizer com aquela coisa de «ir num pé e vir no outro».
Ao passar perto de um bosque, encontrou o compadre lobo que, devido ao estado de emergência decretado pelas autoridades e à consequente escassez de transeuntes em quem ferrar a dentuça, estava com uma fome terrível. Perguntou-lhe este:
- Alto! Onde vais?
A menina estacou e respondeu-lhe, de longe:
- O senhor é polícia? Ai é? Então, digo-lhe que tenho de ir a casa da minha avó, levar-lhe estas compras, porque ela faz parte de um grupo de risco e não pode sair de casa.
O Lobo perguntou onde morava a avó, para «confirmar a veracidade da justificação» da rapariga e mandou-a seguir.
Assim que ela virou costas, desatou a correr em alta velocidade por um atalho da floresta, que usava nos seus treinos de corta-mato. A menina, por seu lado, seguiu pela estrada, que era uma rota mais longa, mas muito mais segura, dado que tinha sido acabada de desinfectar pelos serviços camarários.
Num instante, o bicho chegou a casa da avó e bateu à porta. A velha, no entanto, teimosa como era, desobedecera às recomendações de confinamento social e fora «passear a periquita».
Como a porta estivesse destrancada, o lobo entrou, disfarçou-se como pôde com algumas roupas da avó e enfiou-se na cama dela, à espera que chegasse a moça.
Capuchinho Vermelho não tardou. Quando bateu à porta, o lobo, lá de dentro, disfarçou a voz e murmurou:
- Puxa a cavilha, que o trinco cairá.
Mas a menina respondeu:
- Não, avó. Trago-lhe uns bolinhos que a minha mãe fez, mas deixo-lhos aqui à porta, para não correr o risco de a contaminar a si. Agora, tenho de ir embora, porque as saídas da residência não podem ser muito demoradas e eu não quero levar um processo por desobediência às autoridades. Fique bem, não saia de casa.
Depois de pousar a cesta no degrau da porta, agora que tinha as mãos livres, desatou a correr de volta a casa, como faz a maioria dos miúdos da idade dela.
O lobo, desiludido, praguejou entredentes, porque percebeu que ali não iria encontrar ninguém em quem ferrar a dentuça. Teria de se contentar com os bolinhos. Por isso, agarrou na cesta e voltou para a floresta.

A falta de paciência do jogo das paciências (18)


Aquela era a décima noite em que o senhor Semedo e o Jóquer se preparavam para ouvir mais uma das histórias contadas pelas cartas de jogar. O baralho estava espalhado sobre a mesa, com as cartas de face para baixo, e o dono da casa virou uma, constatando que era o Oito de Paus.
- Hoje vamos saber como é que um pobre ferreiro conseguiu enganar o diabo - anunciou este. - Acomodem-se bem, que a história é um pouco longa.
Os dois ouvintes assim fizeram e a carta de jogar iniciou a narração.

Era uma vez um ferreiro muito pobre que tinha muitos filhos. Era tão azarado que tinha como alcunha «O Ferreiro da Maldição que, quando não lhe falta o ferro, falta-lhe o carvão».
Um dia, sem ter que dar de comer aos filhos, foi pedir esmola, mas nem um pedacinho de pão conseguiu. Já vinha de volta quando encontrou um sujeito muito bem vestido, a quem estendeu a mão. O indivíduo perguntou-lhe por que é que ele andava a mendigar se naquele lugar havia tanto trabalho para fazer. O ferreiro falou-lhe então da sua desgraça.
O tal sujeito disse-lhe que era capaz de quebrar a maldição, mas, em troca, o ferreiro teria lhe dar três gotas de sangue do dedo mindinho da mão esquerda. Depois, teria de obedecer a qualquer chamada que lhe fizesse, fosse onde fosse, estivesse onde estivesse.

domingo, 5 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (17)


Assim que o Seis de Ouros acabou de contar a sua história, o senhor Semedo e o Jóquer olharam um para o outro, com falso ar amedrontado, e largaram a rir.
- Esta história teve um final um bocado assustador. Tiveste medo? - perguntou o dono da casa.
- Naaaa... O Jóquer nunca tem medo - respondeu o outro. - E tu?
- Eu, já sabes, sou o senhor Sem Medo.
E voltaram a gargalhar até lhes doer a barriga.
A carta de jogar olhou para eles como se não estivessem bons da cabeça e aproveitou para voltar ao baralho.
***
No dia seguinte, à hora combinada, lá estavam os dois amigos à volta da mesa da sala, tentando adivinhar qual seria a carta sorteada.
- Acho que é hoje que te sai a Rainha de Copas - murmurou o Jóquer, em jeito de provocação.
- Nem me fales... - reagiu o dono da casa. - Vou virar esta e logo se verá.
Começou a virar, muito devagarinho, a carta que tinha debaixo da mão direita e parou a meio do movimento.
- É uma rainha, mas não sei qual. Ai! Queres ver que me azaraste? - protestou ele.
- Deixa-te disso - respondeu o Jóquer. - Vira lá a carta e, tal como disseste, logo se verá.

sábado, 4 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (16)


- Que carta irás tu desencantar hoje? - indagou o Jóquer, enquanto o senhor Semedo espalhava o baralho sobre a mesa.
- Venha a que vier, já sei que teremos mais uma bela história - respondeu ele com um sorriso, enquanto virava uma carta. - Olha, saiu uma sena de ouros!
O Seis de Ouros fez uma vénia desajeitada e sentenciou:
- Hoje, vamos saber quanto custa a ingratidão!
O Jóquer e o senhor Semedo puseram-se muito atentos, enquanto a carta de jogar narrava a sua história.

Um jovem fidalgo da província vivia com o pai num antigo castelo, alcandorado sobre uma colina rochosa. A mãe tinha falecido ao dá-lo à luz e o viúvo decidira nunca mais casar. Por isso, o moço tinha sido criado por uma ama de leite, que o adorava como se este fosse seu filho.
À volta da fortaleza, estendiam-se amplas e férteis planícies, onde os vassalos semeavam e criavam gado, garantindo o sustendo das suas famílias e do seu senhor. Longe iam os tempos de guerras e escaramuças, vigorando a paz por todo o território daquele reino. E este ambiente pacífico era propício a uma vida  próspera e tranquila. No entanto, o jovem sonhava com viagens e aventuras, desejoso de conhecer o mundo para lá daqueles horizontes.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (15)


O senhor Semedo acordou tarde, já que o serão anterior se tinha estendido pela noite dentro. Fez um pequeno- almoço avantajado, poupando assim o almoço. Durante a tarde, ocupou-se em limpezas e arrumações e o tempo passou sem ele dar conta. À noite, depois de jantar, preparou as coisas na mesa da sala e esperou pelo Jóquer, que não tardou a chegar.
- Boa noite - saudou ele. - Vamos a isto?
O senhor Semedo escolheu uma carta e virou-a. Era um Três de Paus, que anunciou:
- Hoje, vamos ter uma fábula. A moral, no entanto, ficará ao cuidado de cada um.
E começou a contar.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (14)


À hora combinada, estava o senhor Semedo em frente ao Jóquer, em vias de escolher mais uma carta do baralho. Perdera o receio de reencontrar a Rainha de Copas, porque suspeitava que ela fazia o impossível para o evitar. Curiosamente, saiu-lhe mais uma carta do naipe dela, mas desta vez o Ás.
Feitas as saudações e as apresentações, o Ás de Copas avisou que o conto que trazia era também um enigma. Tratava-se de uma história inventada sobre uma pessoa real, cuja identidade os ouvintes teriam de adivinhar no fim.
O Jóquer exultou:
- Excelente! Adoro enigmas e adivinhas. Vamos a isso.
O Ás de Copas aclarou a voz e iniciou a narração:

Num país longínquo do Norte, havia um casal muito pobre que tinha um filho chamado Hans. O pai era sapateiro e a mãe, lavadeira. Viviam numa casa minúscula, que era, ao mesmo tempo, habitação e oficina. Quando o rapaz chegou à idade de andar na escola, o pai matriculou-o, recomendando-lhe que estudasse muito, para arranjar uma profissão melhor que a sua.
No entanto, Hans detestava a escola e, sempre que podia, faltava às aulas para se ocupar das suas brincadeiras preferidas. O pai e a mãe ralhavam-lhe, mas eram brandos com ele.

A outra história da carochinha


Uma linda carochinha
Estava a lavar a panela
E viu no chão da cozinha
Uma brilhante rodela.

Era uma moedinha.
Carochinha pegou nela
E foi logo à tendinha
Comprar uma fita amarela.

Tão vaidosa, a carochinha
Foi logo pôr-se à janela
A perguntar a quem vinha
Se queria casar com ela.

Veio o gato da vizinha
E deu uma miadela.
Não o quis a carochinha.
- Ai que susto! – disse ela.

Veio o porco da hortinha
E deu uma roncadela.
Não o quis a carochinha.
- Ai que susto! – disse ela.

Veio um cão mesmo à beirinha
E ladrou para a janela.
Não o quis a carochinha.
- Ai que susto! – disse ela.

Veio um burro lá da vinha
A zurrar pela viela.
Não o quis a carochinha.
- Ai que susto! – disse ela.

Um rato de bengalinha
Veio a chiar com cautela.
Já o quis a carochinha
Para ali casar com ela.

Com o padrinho e a madrinha,
Foram logo para a capela,
Ela de seda branquinha
Ele todo de flanela.

- Perdi a minha luvinha -
Disse o rato para ela.
Logo voltou para a casinha
E foi espreitar a panela.

Que bom cheiro dali vinha:
Era sopa de morcela.
O rato pôs-lhe a patinha
E caiu para dentro dela.

Chora agora a carochinha:
- Ai de mim, pobre donzela.
Sou a triste viuvinha
Deste rato magricela.

Mas chegou uma cartinha
De um carocho tagarela
Que casou com a carochinha.
E acaba aqui a novela.