sábado, 23 de fevereiro de 2008

A morcela viajante



Uma morcela de arroz decidiu ir correr mundo. Andou, andou, até que chegou à beira do oceano. Como não lhe apeteceu voltar para trás, deitou-se à água e pôs-se a navegar pelo mar dentro. Pouco depois, uma gaivota que andava à pesca deu com a morcela vogando nas ondas e pensou logo que tinha ali um belo almoço. Abriu o bico e mergulhou das alturas em direcção à água. A morcela viu as manobras da gaivota, mas não perdeu o sangue frio. Quando o passaroco estava quase a filá-la, a morcela desviou-se com um golpe de rins. A gaivota bateu de chapa na água e perdeu os sentidos. Um safio que ia a passar admirou-se da coragem da morcela e pediu-a logo, logo, em casamento. Mas a morcela não aceitou. Agradeceu polidamente, retorquindo:
- Obrigada, meu bom amigo, mas não. Acredito que tenhas boas intenções. Mas eu sou uma morcela emancipada e não tenho nos meus projectos mudar fraldas borradas e apaparicar calaceiros. O meu destino é correr mundo. E é o que vou fazer.
E foi.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

A vingança do guardanapo


Um guardanapo alvo e engomado foi admitido como agente da Guarda. O comandante do posto, um esfregão grosseiro e insolente, achava que o guardanapo era demasiado fino para o exercício daquelas funções e estava sempre a implicar com ele.
- Olhe lá, você não será antes um guarda-nabo? Isto aqui é para gajos de barba rija. E quando as coisas não vão a bem, vão mesmo à bruta. Como é que você, um engomadinho do caraças, vai fazer valer a sua autoridade, se nem pêlo tem na venta, hã?
O pobre guardanapo ficava humilhadíssimo com estes comentários boçais, mas engolia em seco e permanecia em silêncio. É que ele, quando se enervava, gaguejava descontroladamente. E imaginava o vexame que passaria se descobrissem nele aquilo que seria considerado como mais uma fraqueza.
Foi ouvindo, foi engolindo, foi enchendo, mas aguentava-se estoicamente, fingindo que fazia orelhas moucas às provocações do sargento esfregão… embora, por dentro, ficasse a ferver.
Numa tarde de pouco movimento - estava o posto cheio de agentes - ao ouvir mais uma série de ordinarices do comandante, não aguentou mais e rebentou.
- Vá-vá-á lim-lim-limpar la-latrinas, seu-seu la-lateiro.
Atirou o bivaque para cima do balcão de atendimento e saiu porta fora. O resto da corporação ria perdidamente.
- Ó pá! O gajo não é só engomadinho, também é gago - dizia um escovilhão lambe-botas.
- Pois. É um engo-gugu-mamadinho - respondeu outro.
- Eu é que tinha razão. É um verdadeiro guarda-nabo - rematou o comandante.
Mas cá se fazem, cá se pagam! Quando o esfregão chegou a casa, ao fim do dia, ia tendo um chilique. A mulher, uma bela toalha de bilros, tinha feito as malas e fugira para o Brasil com o guardanapo.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

O «croissant» solitário


Um «croissant» simples vivia só, num apartamento dos subúrbios de uma grande cidade. As noites passava-as ele bem, porque trabalhava numa padaria e o odor do pão acabado de cozer fazia-o esquecer todas as suas mágoas. O pior era de dia, quando voltava para casa e se confrontava com a sua solidão.
Um dia, pôs um anúncio no jornal, propalando o seu desejo de arranjar uma companheira.
Responderam duas candidatas: uma elegante fatia de queijo e uma saudável e vigorosa fatia de presunto. Se uma reunia o requinte e a sofisticação próprias das damas da alta sociedade, a outra tinha todo o encanto das gentes enérgicas do campo.
Depois de um tempo de indecisão, acabou por ficar com as duas, a dama e a camponesa. Vivem os três em alegre harmonia, numa vivenda de Cascais que o «croissant», agora misto, recebeu de herança.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Os três candidatos laranja


Numa rua de Pombal, três gomos de laranja discutiam entre si qual deles tinha o perfil mais adequado para deputado da Nação.
O primeiro argumentava com os seus doutos conhecimentos das complexas regras do ténis de mesa. O segundo, equilibrado perigosamente em cima de um postal dos correios, falava das suas viagens por terras distantes e do seu domínio das grafias estrangeiras.
O terceiro barafustava com os outros dois dizendo que sempre tinha sido o mais inteligente dos três e não admitia sequer que pusessem em causa aquilo que para ele era evidente: o deputado seria ele mesmo, sem mais argumentos nem palavreados ocos.
Um rapazinho que vinha a correr pela rua abaixo espantou-se com aquela algaraviada. Parou, olhou para eles, pegou num de cada vez e comeu-os, que muito bem lhe souberam.
E assim perdeu a Nação três dos seus melhores candidatos a deputados. Mas, até hoje, ainda ninguém reparou.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

A ervilha capitalista


Toda a gente se lembra da famosa princesa que afirmou a pureza da sua estirpe ao dar-se por incomodada com uma ervilha que estava muito quieta e calada debaixo de uma caterva de colchões, edredões, travesseiros, mantas, cobertores e outros agasalhos sobre os quais dormira (coitado do príncipe que casou com ela; com uma tipa tão comichosa, deve ter passado as passas do Algarve…). O que ninguém se perguntou ainda, foi: «Então e a ervilha? A ervilha não é gente? Que foi que lhe aconteceu?» É exactamente o percurso dessa ilustre leguminosa que aqui vamos tentar desvendar.
Depois de constatar que a dita não fazia parte das jóias reais nem estava num museu (conforme sugerem as crónicas da época), iniciámos uma intensa investigação que nos conduziu aos baixos do palácio. É que é normalmente aí que se situa a cozinha.
A opinião do cozinheiro foi de que a ervilha, para provocar tanto chinfrim, já não estava em estado de ser cozinhada. Era, de certeza, uma ervilha seca, boa para a sementeira. E o melhor seria perguntar ao hortelão real se ouvira falar dela. Mas o hortelão não soube adiantar mais nada. Pelo que decidimos dar outro rumo à investigação.
Deixámos o palácio atrás das brumas da fantasia e dirigimo-nos ao mundo real. O do capitalismo selvagem, da pobreza endémica e da violência gratuita. Foi aí que a encontrámos. Desgostosa com a pouca importância que tivera na história - embora reconhecesse a Hans Christian Andersen «uma grande capacidade efabulatória» - a ervilha tinha batido com a porta para fazer pela vida noutras paragens. Entre outras coisas, fez parte de um «gang» mafioso, onde estava encarregue das torturas, mas as suas pretensas vítimas não tinham a sensibilidade cutânea da princesa da história. Tentou ainda a carreira militar, mas o máximo que conseguira realizar fora um «galo» na tola rapada de um recruta desmiolado, ao ser projectada por outro recruta desmiolado. Acabara por se tornar empresária do ramo alimentar.
Estava nesse momento a tratar da «deslocalização» de uma das suas fábricas para um país de Leste. Perguntámos o que ia acontecer aos 324 trabalhadores que essa decisão lançava para o desemprego. «É um mundo cão - desabafou - mas o que havemos de fazer?» E voltou-nos as costas, dizendo: «O capitalismo não tem pátria».
Pois é! Mas, à conta disso, são sempre os mesmos que pagam as favas!

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

A tartaruga amnésica

Na longínqua e misteriosa China, andava uma velhinha vasculhando os rochedos da maré baixa à procura de algo para comer quando encontrou uma pequena tartaruga marinha. «Que bela sopa vou eu fazer com esta tartaruga» pensou; pegou nela e levou-a para casa.
A tartaruga, que embora pequena era ainda mais velha que a velhinha, não teve outro remédio senão conformar-se com a sua pouca sorte. Já tinha percorrido tantas milhas ao longo dos oceanos do mundo, já tinha deixado os seus ovos em tantas praias arenosas, que se dava por satisfeita com a vida que tinha tido.
Chegada a casa, a velhinha colocou a tartaruga sobre a mesa da cozinha e foi apanhar umas ervas aromáticas para a sopa. A tartaruga, assim que se sentiu imóvel, deitou a cabeça de fora da carapaça e viu que estava sozinha. Estendeu as barbatanas e tentou descer da mesa. Mas, como não reunia as competências físicas para o fazer, deu um enorme trambolhão, bateu com a cabeça e perdeu os sentidos. Quando voltou a si, tinha perdido todas as referências sobre a sua identidade e experiência passada. Estava amnésica.
Por uma estranha associação de ideias, a tartaruga amnésica convenceu-se que era um cão. Quando a velhinha voltou, encontrou-a no chão, a latir, correndo atrás do rabo.
A encarquilhada chinesinha não ganhou para o susto. Mas, passada a perplexidade inicial, pensou para os seus botões: «Se os deuses fizeram chegar a mim esta extraordinária criatura, decerto não foi para que eu fizesse dela uma sopa. Devem ter-se apiedado da minha solidão e enviaram-me uma companhia para me alegrar até ao fim dos meus dias».
E foi assim que a tartaruga passou de projecto gastronómico a animal de companhia. Daí aquele provérbio chinês que diz: «Nem só os cães ladram: as cadelas também; e por vezes as tartarugas».

domingo, 3 de fevereiro de 2008

O mandato do peixe pré-histórico

Há várias maneiras de confirmar a frescura de um peixe. O brilho dos olhos, a vermelhidão das guelras, a rigidez das carnes, a integridade das escamas e o próprio odor são apenas alguns sinais. Mesmo conservado à força de gelo e sal, mesmo escamado e estripado, vê-se logo se um peixe é ou não fresco.
Mas há um peixe que, mesmo vivo e a dar à barbatana, é mais retrasado que um espécime congelado no tempo em que se inventou o primeiro frigorífico. É o peixe pré-histórico, que cruza as profundezas dos mares desde há milhões de anos. É tão antigo que, ainda os dinossauros não existiam, já ele abanava a cauda no caldo primordial. Não se sabe por que capricho da natureza, mesmo depois dos grandes lagartos se terem transformado em curiosidades de pedra, ainda o peixe pré-histórico continua a percorrer os oceanos, com o seu ar sisudo e carrancudo.
Ora, certo peixe pré-histórico foi um dia convidado por um cardume de peixitos para se candidatar a uma autarquia das profundezas. A princípio, mostrou-se relutante, mas acabou por sucumbir ao discurso melífluo dos peixitos: que era preciso destronar o bacalhau que então os chefiava, que era preciso abrir espaço à livre iniciativa, que era preciso isto, que era preciso aquilo… E aquele que tinha melhores condições para o fazer era ele, pois então. Mesmo que fosse feio que nem uma alforreca, mesmo que se portasse à mesa como um carroceiro, mesmo que não ousasse alinhavar quatro palavras sem cometer um atentado à inteligência, isso eram pormenores sem importância.
O que é certo é que aceitou o repto e ganhou por uma unha negra. Embora a prazo, tornou-se o líder supremo de todos os cardumes das redondezas.
Mas depressa o escamudo pré-histórico achou que autarquia rimava bem com autocracia. Eram ambas a mesma coisa. Ou não? Claro que sim. Não?
Quem tinha a ousadia de o desdizer levava logo no toutiço: começou de imediato a devorar os opositores e os possíveis concorrentes ao cargo. É que afinal era carnívoro e ninguém sabia.
Os peixitos puseram as barbatanas à cabeça, imaginando que teriam de suportar o labrego durante mais um milhão de anos. Tinham-na feito bonita. E agora?
A primeira ideia foi armar-lhe uma cilada e fazer com que fosse parar ao prato de algum «gourmet». Mas a profundidade a que se movimentava deixava-o a salvo das redes pesqueiras. Por isso é que tinha vivido tanto tempo…
Decidiram apoiar outros candidatos, tentando derrotá-lo nas eleições. Mas estes ou eram devorados antes do acto cívico, ou ninguém votava neles, com medo de ser devorado também.
Decidiram acusá-lo de corrupção, para o forçar a perder o mandato. Mas também não deu resultado…
A sorte, às vezes, surge quando menos se espera. Afinal o peixe pré-histórico acabou por abandonar o poder por causas naturais. Como era muito velho, não aguentava dietas ricas em proteínas, teve uma indigestão e morreu.
No funeral, os peixitos fingiram uma tristeza que não sentiam e lá mandaram o cadáver do odiado líder para o abismo dos notáveis.
Mas há gente que nunca ganha juízo: no dia seguinte, trataram de se reunir para escolher um novo candidato. E a discussão em que se envolveram era se deviam apoiar o bacalhau ou convidar um tubarão.