sábado, 19 de janeiro de 2008

A «manif» da castanha pilada

(Ao Zé Oliveira)

Uma castanha pilada estava a espreitar pelo Buraco da Fechadura, quando ouviu uma coisa que a deixou alarmada:
- Amanhã vamos organizar um magusto para a malta lá do serviço. Temos de ir comprar as castanhas e a água-pé ainda hoje.
Eram os vizinhos da frente, que andavam sempre em farras e algazarras.
- Mau, Maria! - sobressaltou-se a castanha pilada. - Vai haver carnificina. O que me safa é eu ser uma castanha pilada. Assim ninguém me lança ao fogo. O pior são as pobres das primas, que vão esturricar na fogueira para estes alarves encherem a barriga. Vou ter de fazer alguma coisa!
Decidiu-se então a mandar um e-mail à SPC, isto é, à Sociedade Protectora das Castanhas, a fim de promover uma manifestação de protesto contra o tal magusto.
Juntaram-se os manifestantes no local anunciado e armaram o arraial com a parafernália do costume: altifalantes, bandeiras, faixas, pancartas e outros materiais de agit-prop.
À hora marcada, no entanto, não apareceu ninguém: nem os vizinhos da frente, nem a malta lá do serviço. E do magusto, nicles.
Foi-se a saber e a iniciativa tinha sido cancelada devido à falta de fundos. Ao preço a que estava a castanha, não havia carcanhol que chegasse. Quanto à água-pé, sem castanhas, também não valia a pena.
E os manifestantes voltaram para casa cabisbaixos, remoendo impropérios contra a sua falta de sorte. É o que faz a carestia de vida!

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

O piquenique da bolacha Maria

No primeiro dia de Primavera, uma turma de bolachas Maria de um colégio interno saiu para fazer um piquenique à beira-rio. A meio da tarde, lá foram elas com os cestos da merenda, à procura de um local onde pudessem estender as toalhas e desfrutar o sol primaveril. Atrás ia a irmã Celeste, uma barriga de freira lustrosa e rechonchuda, encarregada de as vigiar.
As bolachas, no entanto, não se ralavam muito com isso. Sabiam bem como ludibriar a sua guardiã, de modo a poderem fazer todas as traquinices que lhes apetecessem. Chegadas ao local do piquenique, empanturraram a irmã Celeste com guloseimas, até que esta, embalada pelo zumbir das abelhas, acabou por adormecer.
Sorrateiras, as bolachas descalçaram os sapatos e as meias, despiram as saias e as blusas e puseram-se a chapinhar no rio. Mas, passado algum tempo, a algazarra era tamanha que a irmã Celeste acordou sobressaltada.
Zangada com a impertinência das pequenas, obrigou-as a sair da água e a vestirem-se imediatamente. Depois, voltaram para o colégio a toque de caixa.
Para castigo, nessa noite foram para a cama sem jantar. E nunca mais houve passeios, nem piqueniques, nem festas. Passaram a viver em regime de austeridade, como as bolachas de água e sal.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

As trufas siamesas

Separadas à nascença com precisão cirúrgica pelo pasteleiro, duas trufas siamesas nunca se libertaram da sensação de serem um corpo só. De tal forma, que nunca estava uma sem a outra. A identificação era tão grande que confundiam as suas próprias identidades.
- Desculpa lá, esta sou eu ou és tu? - era costume perguntarem.
E por vezes o debate alargava-se por longos períodos, até chegarem a um acordo sobre quem era quem.
A paixão assolapada que cada uma delas tinha pela outra era motivo de risota, dando azo a histórias dignas de antologia. Na pastelaria, toda a gente as conhecia pelas «fufas siamesas», embora, em rigor, não fossem nem uma coisa nem outra.
- Desculpa lá, eu sou uma trufa ou uma fufa? - gargalhava um pastel de nata, num tique efeminado.
- Não. És um pastel de nata sem vergonha. - respondia, perdida de riso, uma fatia de torta, que era torta.
Fartas de serem postas a ridículo, as trufas estavam determinadas a desfazer o equívoco. Um dia, quando menos se esperava, decidiram seduzir um jovem alto, espadaúdo, loiro e de olhos azuis que entrou na pastelaria. O rapaz não resistiu aos encantos das trufas e, perante a estupefacção da doçaria, comeu as duas ao mesmo tempo.

sábado, 12 de janeiro de 2008

O strip-tease da cebola

Crivada de dívidas, uma cebola desempregada não teve outro remédio senão aceitar um trabalho de stripper num night-club de terceira categoria.
Nessa noite, a cebola estava nervosíssima, já que era a primeira vez que se iria expor assim aos olhares de gente estranha. Mas lá subiu ao palco e começou a descascar-se. Conforme iam caindo as peças do vestuário da cebola, a clientela ululante gritava «tira, tira», cada vez com mais entusiasmo. E a pobre cebola lá se ia descascando a contragosto.
O problema é que, com tanta roupa, nunca mais chegava ao que interessa. E depois havia aquele estranho odor corporal que ia libertando…
Horas depois, os clientes, frustrados e lavados em lágrimas, iniciaram um motim e destruíram todo o mobiliário do night-club.
O patrão despediu a cebola imediatamente e pô-la no olho da rua sem lhe dar um tostão.
Mas a cebola não ficou desempregada, não. Um agente de espectáculos, que assistira a tudo, arranjou-lhe emprego como actriz num dramalhão de fazer chorar as pedras da calçada.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

O dilema dos papa-açorda

Decretou-se o luto na congregação: finara-se a tachada de cozido à portuguesa que mobilizara tantas devoções palatinas. Grande foi a consternação dos acólitos, grande a choradeira pelas vielas do burgo.
Reuniram-se em conselho gastronómico os maiorais do culto, a fim de escolher sucessor. Mas, seis horas depois, ainda se não chegara a consenso.
A especulação incendiava os noticiários televisivos, transbordava das colunas dos jornais e monopolizava as conversas de café. A que se deveria tal impasse? Porque sim, porque não, porque talvez - arriscavam uns e outros.
Finalmente, depois de acesas discussões, dos embates entre as diversas facções, de difíceis e aturadas negociações, do fogão em que os maiorais haviam acabado de preparar uma especialidade culinária, saiu o tão esperado fumo branco. E alguém constatou: temos papa! A escolha havia sido unânime: um borbulhante e cheiroso tacho de açorda ocupava agora o centro das atenções.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

O bife do lombo supersticioso

Fosse qual fosse a ocorrência, desde que saísse da rotina habitual, era sempre tomada como um sinal fatídico por um certo bife do lombo. É que ele era muito, mas mesmo muito supersticioso.
Se lhe passasse um gato preto pela frente, era certo que se benzeria sete vezes e sete vezes invocaria a protecção dos bons espíritos contra a desgraça que ameaçava cair-lhe em cima. Mas o mesmo aconteceria se o gato fosse cinzento, branco, amarelo ou malhado, tão supersticioso era este bife do lombo.
A sua vida era cheia de complexos rituais, rezas, invocações, promessas, peregrinações e outras manias e aberrações, tanto se encarniçava na luta contra o azar.
E assim queimou os seus melhores anos. Não casou, não teve filhos, não plantou nenhuma árvore, nem escreveu nenhum livro. Acabou, como muitos outros bifes do lombo, rilhado por um conviva voraz, numa boda de casamento.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

O croquete que ganhou a Volta a Portugal

Um croquete apaixonou-se perdidamente por uma bela batata frita, alta, loura e bronzeada, e decidiu pedir-lhe namoro. Mas a batata frita era adepta do sexo alternativo e optara por estabelecer relações apenas com outras batatas fritas iguais a ela.
Com o desgosto, o croquete pensou em mil e uma maneiras de pôr termo à vida. Até que decidiu ir fazer parapente lançando-se do Sítio da Nazaré …mas sem o parapente. Pegou na sua bicicleta e pedalou furiosamente em direcção àquela famosa estância balnear.
A certa altura, o croquete vislumbrou uma chusma de ciclistas que o perseguiam a alta velocidade. Assustado, pedalou ainda mais energicamente, tentando escapar-se àquilo que ele pensava ser uma acção punitiva de um bando rival.
Tanto se empenhou a fazer girar a roda pedaleira, que cortou a meta da Volta a Portugal em primeiro e ganhou a camisola amarela. E descobriu que os seus supostos perseguidores eram, afinal, os restantes concorrentes à Volta.
Hoje, o afortunado croquete dedica-se ao ciclismo, com o patrocínio de uma conhecida marca de produtos alimentares. E é alvo das atenções das mais desejadas batatas fritas.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

A panela de sopa que chegou a secretária de estado

Aquando da constituição do novo governo, uma panela de sopa pegou no cartão do partido e foi pedir satisfações ao primeiro-ministro recém-eleito: que sempre tinha sido uma militante dedicada, que se fartara de colar cartazes, de distribuir panfletos e autocolantes e até gastara o seu latim a tentar convencer os eleitores da rectidão do programa eleitoral. E o resultado estava à vista: maioria absoluta! Decerto que ela merecia um lugarzinho no novo governo.
- Uma panela de sopa? Mas a senhora não se enxerga? Ainda se fosse um tacho… Ora esta! - retorquiu o primeiro-ministro.
Mas a panela de sopa não se deixou intimidar e respondeu-lhe:
- Não se abespinhe, que não vale a pena. Sou uma mera panela de sopa, mas já matei a fome a muita gente.
E o primeiro-ministro teve que se render às evidências, nomeando a panela de sopa para Secretária de Estado da Alimentação.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Morte trágica de um rabanete asmático

Havia um rabanete que sofria de asma. O pobre legume não podia fazer esforços mais pesados ou ficava logo com falta de ar e a tossir desesperadamente. Não podia andar de bicicleta, carregar pesos, subir escadas, engraxar os sapatos… Resumindo, tinha um sem número de limitações que lhe tornavam a vida muito penosa.
Depois de vários dias ao relento nas filas do posto médico, lá conseguiu uma consulta onde lhe receitaram uma bomba para asmáticos, o que lhe permitiu melhorar substancialmente a sua qualidade de vida.
Tudo corria agora muito melhor ao rabanete, dado que conseguia controlar a asma e podia assim desempenhar algumas tarefas que até aí lhe estavam vedadas.
Ora, aconteceu que um dia se esqueceu da bomba no autocarro que o trazia do trabalho. Quando se lembrou, já o veículo ia em andamento. O rabanete enervou-se, pôs-se a correr atrás do autocarro aos gritos e acabou por desmaiar com falta de ar. E o pior aconteceu quando um condutor apressado lhe passou por cima e o reduziu a puré.
Enfim, uma tragédia!

domingo, 6 de janeiro de 2008

O doutoramento do torresmo

Concluiu o seu doutoramento, por unanimidade e aclamação, na Universidade Independente, um naco de toucinho de Chaves. A tese, considerada pioneira no nosso país, versa a temática da salinização do presunto curado e o contributo das folhas de louro para a caracterização dos sabores nortenhos.
O naco de toucinho foi levado em ombros pelos seus pares e promovido a torresmo pelo processo tradicional, num tacho de barro adequado a esse fim. Diz quem teve o privilégio de assistir ao evento que os odores libertados eram de fazer crescer água na boca.

sábado, 5 de janeiro de 2008

Revolta na salada de mexilhões

Nem tudo corre bem na salada de mexilhões. Tal como noutros sistemas fechados, também aqui há quem se demarque da linha oficial e se arrogue o direito de manifestar opinião diversa. Foi o que aconteceu a uma rodela de cebola, que criou um movimento dissidente clandestino com o objectivo de protestar contra o actual estado de coisas.
Durante uma manifestação não autorizada, foram feitas várias prisões e dos detidos nunca mais se soube nada. O que leva as organizações humanitárias a acusar as autoridades locais de ter eliminado fisicamente os oposicionistas. Os protestos chegaram mesmo às Nações Unidas, mas as entidades oficiais negam qualquer responsabilidade.
O que é certo é que os inspectores da ASAE, da última vez que inspeccionaram a salada de mexilhões, notaram que as coisas já não cheiravam nada bem.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

O gaspacho que foi eleito papa

Sobre um país distante, abateu-se uma violenta seca que desertificou os campos e deixou a população quase sem nada para comer.
Houve um dia que restavam apenas cinco tomates maduros, um pimento verde, um pepino, uma cebola, quatro dentes de alho, uma pitada de sal, um restinho de azeite, uma pinga de vinagre de vinho, um molhinho de orégãos e três fatias de pão de véspera.
Reunido o Conselho de Estado, foi decido juntar tudo e fazer um gaspacho, porque já não havia dinheiro para o gás, o que permitiria fazer uma sopa quente. O gaspacho foi então distribuído à população faminta que o saboreou deliciada. Houve até quem lambesse a terrina.
Fez-se depois um concurso onde se decidiu canonizar tão sublime iguaria, que havia salvo o povo da inanição. E foi assim que, naquele país, o gaspacho foi eleito a melhor papa de sempre.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

A patanisca que queria ingressar na função pública

Farta do cheiro a fritos da tasca onde nascera, uma patanisca de bacalhau decidiu ingressar na função pública.
Procurou no jornal da terra se havia vagas nalguma repartição e, depois de identificar duas ou três hipóteses, preparou-se para concorrer a um lugar de topógrafo municipal.
Elaborou um imenso currículo com todas as suas habilitações e realizações profissionais, a que juntou fotocópias dos respectivos certificados. Explicou ainda que sabia muito bem o que era um teodolito. Aliás, que tinha mesmo sido noiva de um, mas que este batera a asa para a ilha da Madeira e nunca mais voltara, o infame. Que, no entanto, não guardava ressentimento e estava disposta a esquecer o incidente.
Quase no final do prazo do concurso, meteu-se na longa fila que dava a volta ao quarteirão e esperou a sua vez. Conseguiu entregar a sua candidatura quando o guiché estava quase a fechar.
Mas de nada lhe valeu. A Câmara contratou o teodolito, que entretanto havia voltado das ilhas. É que este sempre era da terra e trazia uma carta de recomendação do Governo Regional.

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

A colher de pau refractária

Uma colher de pau foi apurada para a tropa. Uma semana antes da data em que tinha de se apresentar à recruta, fez a trouxa e pôs-se a caminho do quartel de Mafra. E lá foi aos saltinhos num só pé, que é o que fazem todas as colheres de pau quando têm de se deslocar pelos seus próprios meios.
Passou o primeiro dia e não havia meio de lá chegar. Passou o segundo dia e não havia meio de lá chegar. Passou o terceiro dia e não havia meio de lá chegar. Passou o quarto dia e não havia meio de lá chegar. Ao quinto dia ainda ela estava demasiado longe do seu destino, mas suficientemente perto de casa para voltar para trás. E foi o que fez.
O que é estranho é que nunca deram pela sua falta. Uma colher de pau podia dar muito jeito na resolução de alguns dos mais graves conflitos mundiais!